Discurso do Presidente da Direção da APIPDF na Sessão de Abertura da Conferência sobre Violência Doméstica e Alienação Parental

Discurso do Presidente da Direção da APIPDF na Sessão de Abertura da Conferência sobre Violência Doméstica e Alienação Parental

Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

17 novembro de 2016

 

Bom dia a todos e todas.

Quero antes demais agradecer à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa na pessoa do Sr. Prof. Doutor Pedro Romano Martinez, e ao Instituto de Direito Brasileiro, na pessoa do Prof. Doutor Eduardo Vera-Cruz, em acolher mais esta iniciativa da sociedade civil para discutir e refletir sobre tão relevante tema.

Há muitos anos que a Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos se depara com o cruzamento da visão tradicional sobre a violência doméstica e o fenómeno da alienação parental. Esta visão politicamente dominante sobre a violência doméstica tem, em nosso entender, dificultado a identificação do fenómeno da alienação parental e a procura de formas de prevenção primordial e primária. Assim, tendo em conta a honestidade intelectual que sempre colocamos nas iniciativas que realizados, sem abdicar das nossas convicções ou desvirtuar a natureza da intervenção da nossa organização, decidimos, nesta altura, realizar esta conferência, num momento em que se encontram várias iniciativas legislativas, bem como sugestões de associações, inclusive a nossa, que visam dar resposta à problemática.

Quisemos dar assim voz à investigação que tem consistentemente demonstrado a complexidade dos fenómenos, mas igualmente trazer os diferentes grupos parlamentares para dialogarem connosco nesta iniciativa. Quisemos ainda mostrar a prática de diferentes profissionais nesta área, de forma a ajudar-nos a refletir para além dos discursos mediáticos ou politicamente corretos. Por fim, porque não basta identificar e caraterizar os fenómenos, procuramos algumas pistas para prevenirmos e intervirmos.

Tal como já afirmamos antes, a APIPDF manifesta-se contra qualquer forma de violência e dirigida a quem quer que seja (homem ou mulher, criança, jovem, adulto ou idoso, hétero, homossexual ou interssexo, etc.). Mas a APIPDF também se preocupa em evitar que, pelas mais variadas razões, sejam criadas potenciais vítimas de violência no futuro e é nesse quadro de equilíbrio entre as responsabilidades dos progenitores, dos direitos das vítimas e dos direitos das crianças, que se insere a posição da APIPDF.

Comecemos então pelos números da Violência Doméstica em Portugal. O número de ocorrências registadas quanto a este tipo de crime no ano de 2015 (segundo o RASI) foram de 26.783, traduzindo-se isso numa taxa de incidência 2,58 por mil habitantes. 68,2% dos inquéritos traduziram-se em arquivamento e mesmo se falarmos das chamadas “cifras negras”, ficará evidente após esta nossa conferência, que as cifras negras não se aplicam apenas a um género, antes pelo contrário. A baixa incidência, a elevada taxa de arquivamento, as cifras negras, a violência doméstica bidirecional e o que sabemos sobre os conflitos parentais em tribunal, leva-nos a questionar as políticas públicas seguidas até agora. Em 2015 existiram mais processos de regulações e incumprimentos do exercício das responsabilidades parentais do que ocorrências de violência doméstica, mais propriamente um total de 40.053 (DGPJ, 2015) ou 50.648 se incluirmos os processos de alteração.

Sobre a alienação parental ou sequer o número de incumprimentos do regime de visitas, não existem dados nacionais. A diferença entre a existência destes números e a ausência de outros, traduz o enorme vazio quando se cruza o fenómeno da violência doméstica com os conflitos parentais, levando a sucessivos erros e incapacidade de desenho de políticas públicas e legislação adequada.

Quanto à violência doméstica, não se trata de negar o fenómeno ou a necessidade de políticas públicas, mas antes interrogar-nos se tais abordagens ao longo de anos e anos têm sido eficazes quando estamos perante um conflito parental. O que observamos empiricamente é a dificuldade em aceitar, por parte de diversas instituições, profissionais e investigadores, o fenómeno das falsas denúncias de violência doméstica, em particular no contexto da regulação do exercício das responsabilidades parentais. Afirmar a necessidade de enfrentar essa realidade não é contribuir para a revitimização ou atentar contra os direitos das crianças, antes pelo contrário, é garantir que a criança possa ser protegida em qualquer das circunstâncias. Retirar do sistema uma percentagem indeterminada de falsas denúncias é contribuir para a eficiência e eficácia do sistema judicial e dos órgãos de polícia criminal, garantindo que as verdadeiras vítimas tenham acesso à proteção e apoio que necessitam.

Na essência, a alienação parental, enquanto comportamento que visa afastar injustificadamente a criança do outro progenitor, quebrando a sua relação de vinculação, pode e deve ser enquadrada no contexto da violência doméstica. Podemos afirmar que a legislação referente à violência doméstica pode e deve contemplar estes comportamentos nocivos para com as crianças (considerada “pessoa particularmente indefesa em razão da idade”), pois trata-se não só de maus tratos psíquicos e privações da liberdade (como nos refere o Artº 152º do Código Penal), mas também, em muitos casos, castigos corporais. Assim, no nosso entendimento, alienação parental é violência doméstica!

Posto isto desta forma, a violência doméstica não pode ser reduzida ao olhar do género, mas entendida como um fenómeno de múltiplas causas, desde económicas às de saúde mental, passando pela observação da ocorrência de tais comportamentos no ciclo de vida dos indivíduos e da família. Comportamentos violentos que façam parte da estrutura de personalidade não podem ser confundidos com comportamentos circunstanciais ou pontuais. As situações de divórcio ou separação, com a existência de filhos/as, são situações de tensão, de redefinição dos papeis de identidade de cada um, de questionamento dos projetos de vida individuais e que levam, muita das vezes, até potenciado pela abordagem do sistema judicial, seja o criminal, seja o de família e menores, a comportamentos que se podem consubstanciar em prática de crime de violência doméstica. Não distinguir comportamentos circunstanciais dos estruturais na área da família e das crianças significa condenar as crianças à perda de uma parte da sua família. Tal crime, indizível, é uma das maiores injustiças que se têm observado nos últimos 20 anos em Portugal.  E tal injustiça, neste contexto, exige uma abordagem de intervenção sistémica e não repressiva.

Observamos com satisfação a evolução de algumas posições político-partidárias quanto a estas matérias, abandonado o paradigma determinista e sectário, procurando antes soluções dentro do quadro constitucional português e não em aventuras legislativas atentatórias contras os mais básicos direitos dos cidadãos de um Estado de Direito Democrático. Recentemente a Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos apresentou uma sugestão de alteração legislativa nesta matéria, centrada nas crianças e não nos adultos. Essa proposta tem como princípios básicos: a celeridade processual; o entendimento que em face de uma denúncia de violência doméstica, seja ela falsa ou verdadeira, a criança está sempre em perigo; e procura de soluções para a alteração da dinâmica familiar destrutiva, por via das seções de família e menores e não através do juiz de instrução criminal. A recente iniciativa do Partido Socialista (Projeto Lei N.º 345/XIII) quanto à regulação urgente das responsabilidades parentais em situações de violência doméstica traduz-se numa mudança de posicionamento que consideramos positiva, mas que, no entanto, insiste em centrar-se nos adultos e não na criança, bem patente na exposição de motivos, que demonstra apenas uma parte da realidade vivida por pais, mães, avós, crianças e os profissionais que lidam com as matérias de infância e juventude. Não contempla, por exemplo, a possibilidade de ambos os progenitores serem constituídos arguidos, levantando graves problemas às decisões dos magistrados. Também não entendemos a necessidade de fixação de pensão de alimentos, quando o que está em causa é a proteção imediata da criança, ou ainda, a introdução de normas indicativas, que vão acabar, na prática, por se traduzir em decisões automáticas de exercícios únicos das responsabilidades parentais, não contemplando, assim, a dinâmica e complexidade da família da criança. Sabemos que as decisões iniciais tendem a tornar-se definitivas, pelo que quando mais restrições forem colocadas aos magistrados para ajudar a família da criança a mudar comportamentos, mais difícil será de garantir a própria segurança das alegadas vítimas. Sabemos que das mais de 28 mil sinalizações às CPCJ mais de 60% residia apenas um dos progenitores ou outras pessoas que não os progenitores, sendo tal número, indicador que a promoção de famílias monoparentais não é de certo o melhor caminho para a proteção da criança. Uma criança numa família monoparental tem 16 vezes maior probabilidade de ser sinalizada a uma CPCJ do que um adulto ser denunciado pelo crime de violência doméstica.
A prática de vários magistrados judiciais de norte a sul do país quanto à articulação das áreas cível e criminal, no sentido de alteração de comportamentos destrutivos para com a criança, tem demonstrado a validade da introdução de outro paradigma de políticas públicas, ou seja, não se reduzido à prevenção e repressão (de cariz interventivo-radical), mas acrescentado o paradigma terapêutico na abordagem à problemática. Negar a evidência empírica sobre essas práticas, que nos apontam mais para a necessidade de mudança de cultura judicial na abordagem a estes fenómenos, é negar o direito das crianças a terem a sua família de forma sã e funcional, tal como previsto nas recomendações do Conselho da Europa. Esperamos que o painel que tem a contribuição dos representantes dos grupos parlamentares se traduza numa discussão franca, aberta e profícua quando à procura de soluções e não à implementação e consolidação de dogmas.

Termino com a convicção que a realidade se irá sobrepor a construções teóricas artificiais, que o sofrimento das crianças em situação de alienação parental não seja silenciado pelo abuso do sistema de denúncias de violência doméstica, que as verdadeiras vítimas de violência doméstica possam ser protegidas, mas ao mesmo tempo, que exista uma preocupação em recuperar a família da criança, sendo ela fundamental para o seu desenvolvimento harmonioso. Criar novas injustiças para resolver outras, só irá penalizar as crianças. Temos que transformar a retórica sobre as mesmas em comportamentos efetivos de proteção e garantia dos seus direitos. O direito à família não pode ser um conceito abstrato e só aplicável consoante os interesses particulares e de grupo. Temos que ir mais além do que fizemos nos últimos 20 anos, temos que ousar pensar e agir para que os conflitos parentais se tornem residuais e o cruzamento destes com o fenómeno da violência doméstica seja cada vez menor.

 

Um bem-haja a todos e todas e bons trabalhos.

 

Obrigado.

 

Ricardo Simões

(Presidente da Direção da APIPDF)

17 de novembro de 2016, Lisboa

 

A ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA PELA IGUALDADE PARENTAL E DIREITOS DOS FILHOS tem por fim as actividades de carácter cívico, cultural, formativo e informativo, no âmbito da protecção e fomento da igualdade parental, nos seus diferentes níveis de intervenção – legislativo, jurídico, psicológico, mobilização da opinião pública, entre outros -, relativamente aos direitos dos filhos (crianças e adolescentes) cujos pais se encontrem separados ou divorciados.