Discurso de apresentação do livro “Uma família parental, duas casas. Residência alternada – dinâmicas e práticas sociais”
Sofia Marinho
Socióloga, Investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa
Boa noite a todos e a todas,
Antes de mais, quero expressar os meus agradecimentos a todos os presentes, aos oradores pelos seus comentários ao livro, à Fnac por ter acolhido a apresentação deste livro e à Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos, aqui representada pelo Ricardo Simões, por ter organizado este evento.
Vou centrar a minha intervenção em 4 dos vários contributos deste livro.
1 – Em primeiro lugar, importa realçar que, em Portugal, as relações parentais de mães, pais e crianças que vivem nas famílias monoparentais e recompostas formadas pela dissolução conjugal estão ausentes nos dados oficiais e têm sido pouco estudadas. Ora, um importante contributo deste livro é, justamente, avançar no conhecimento científico sobre a parentalidade nestas famílias, em particular sobre as práticas de residência alternada que nelas são tecidas, bem como sobre os contextos sociais, culturais e históricos que as moldam, sejam estes nacionais ou internacionais.
2 – Em segundo lugar, o livro demonstra a necessidade de reflectir e debater a adequação dos pressupostos das normas institucionais e das práticas profissionais que regulam a parentalidade após dissolução conjugal, por via das políticas de família vigentes, às atuais realidades da vida familiar. E oferece uma base cientificamente sólida para orientar este debate e para recomendar a implementação da residência alternada, como ponto de partida da regulação das responsabilidades parentais em Portugal.
Cabe realçar que esta base científica é constituída não só pelos textos que constituem o livro, mas também por todas as obras que são citadas e trabalhadas em cada um deles. Deste modo, o livro dá ferramentas para que sejam esclarecidos alguns mitos e mal-entendidos, quer sobre as famílias de residência alternada e as suas crianças quer sobre a investigação que sobre elas tem sido produzida. Estes configuram equívocos que têm sido apresentados como evidências científicas em alguns livros portugueses, que argumentam contra a residência alternada e com os quais é importante dialogar. Na verdade, são obras que apresentam interpretações superficiais e generalizações desadequadas de resultados de estudos internacionais, alguns dos quais já refutados, e que confundem o recorte empírico da interpretação das normas e práticas do direito no que diz respeito à regulação das responsabilidades parentais, com o das realidades sociais da parentalidade e das famílias em Portugal. Convenhamos que são realidades dificilmente correspondentes.
É importante perceber que, nas últimas décadas, a comunidade científica que se dedica ao estudo das famílias formadas pelo divórcio ou pela separação comprovou, repetidamente e em uníssono, numa vasta variedade de pesquisas publicadas, que a residência alternada é a estrutura de relações familiares que melhor atende quer às necessidades psicológicas, emocionais, sociais e materiais que proporcionam bemestar às crianças, quer à igualdade entre mulheres e homens no envolvimento parental e na articulação trabalho-família e, consequentemente, ao seu bem-estar emocional, familiar e social. Com efeito, o estudo intensivo, extensivo e comparativo das dinâmicas das famílias de residência alternada e das de residência com um progenitor (em regra, a mãe) e contactos de curta duração da criança com o outro – seja com responsabilidades parentais partilhadas ou não -, bem como a revisão científica da investigação desenvolvida na década de 80 e 90 do século XX, permitiram identificar fragilidades metodológicas e generalizações infundadas na investigação que associou à residência alternada malefícios para a criança, por um lado, e requisitos relacionais e materiais de funcionamento familiar injustificados na tomada de decisão sobre a atribuição desta, pelo outro lado. Adicionalmente, permitiu identificar claramente quer as desvantagens sociais e para a criança do regime de residência com a mãe e visitas de curta duração ao pai, quer o efeito protetor da residência alternada para as crianças, mães e pais face às consequências negativas da dissolução conjugal, quer, ainda, as situações familiares em que a residência alternada não é recomendável para a criança, que existem e devem ser levadas em conta.
3 – Um terceiro contributo do livro é mostrar a relevância de se conhecer as componentes sociais e culturais do envolvimento parental, da coparentalidade e das relações familiares, bem como as várias camadas da sua multidimensionalidade e complexidade. Este conhecimento tende a estar arredado da regulação das responsabilidades parentais, sendo muitas vezes preterido a favor de noções psicologizantes e particularistas da família, expressas na ideia, hoje em voga, de que “cada caso é um caso”. Contudo, não existem famílias, crianças, pais ou mães a viver em vazios sociais e culturais. As próprias noções de família, maternidade, paternidade e coparentalidade são construções sociais. Mais, são, na verdade, realidades culturais, ou seja, são configuradas pelas normatividades, valores, práticas e significados que, coletivamente e individualmente, atribuímos à reprodução humana e aos laços, relações e papéis sociais que se tecem em torno dela, em cada tempo e contexto socio-histórico. É o conhecimento sobre as dimensões sociais e culturais da parentalidade e da família que permite perceber que as lógicas de funcionamento e as experiências de cada família são simultaneamente únicas e iguais às de muitas outras, seguindo padrões sociais. Isto acontece porque as práticas e relações familiares estão ancoradas na relação entre a cultura e as condições materiais de uma sociedade, e a singularidade identitária, relacional e do percurso de vida de cada pessoa que constitui e cimenta cada grupo familiar.
Na verdade, é esta natureza simultaneamente individual, intima, relacional, material e social que leva a que seja na família, e não tanto noutros contextos, que homens e mulheres interpelam e recusam papéis sociais e hierarquias pré-definidas e fomentadoras de desigualdades entre sexos e gerações, substituindo-as pela negociação parental e conjugal, pela igualdade entre sexos e pela proximidade afetiva entre gerações, novos ingredientes da vida familiar que mudaram as formas de tecer as relações parentais. Foi o que fizeram os primeiros casais que deram forma à residência alternada, dado que começaram por criar novas maternidades e paternidades na vida a dois. Estes casais reagiram contra uma realidade instalada que confinava as mulheres à maternidade e ao trabalho doméstico, retirando-lhes a possibilidade de participarem na vida pública e de serem independentes, e os homens ao trabalho pago e à ausência dos quotidianos domésticos, afastando-os dos cuidados e dos afetos parentais. Desta forma, estes casais tornaram-se protagonistas da mudança social que enraizou valores de igualdade, democracia e individualidade nas sociedades ocidentais. Muitos mais casais se seguiram, e muitos mais se seguirão, pois a mudança social na vida privada, ainda que possa ser lenta e encontre resistências no caminho, dificilmente é contida quando concretiza os valores e os objetivos que configuram o atual projeto coletivo de sociedade.
4- Por fim, quero realçar que o livro demonstra e explica o atual desajustamento entre a Lei e as realidades das famílias contemporâneas, que o conhecimento científico tem demonstrado amplamente. Este é visível em vários planos e tem várias consequências explicadas no livro. Mas é interessante perceber que mesmo num cenário em que a Lei continua a apostar no exclusivismo parental e a justificá-lo com base em perspetivas ultrapassadas das relações familiares e dos papéis e lugares de mulheres e de homens na parentalidade, a parentalidade partilhada continua a instalar-se e a ganhar terreno. Um bom exemplo deste avanço é a maioria da população portuguesa, mais especificamente, 47,5%, considerar que o melhor arranjo familiar para a criança é a residência alternada e só 22% considerar que é melhor para a criança ficar a viver com a mãe. Este dado, que resulta de um inquérito aplicado em 2014 a uma amostra representativa da população portuguesa, parece-me ser difícil de ignorar e, só por si, indica que muita coisa mudou na sociedade portuguesa e que as políticas de regulação de responsabilidades parentais precisam de se atualizar.
Coimbra, 9 de Dezembro de 2017