Apresentação do livro “Uma família parental, duas casas” pelo Juiz Desembargador Paulo Guerra

APRESENTAÇÃO (em Coimbra) da obra:

«UMA FAMÍLIA PARENTAL, DUAS CASAS»

Editoras/Coordenadoras: Sofia

Marinho e Sónia Vladimira Correia

Paulo Guerra

Juiz Desembargador

 

 

1.     Pensando no tema do interessante e útil livro hoje apresentado, foi-me fácil relacionar com ele o filme que há bem muito tempo vi, intitulado “K-PAX”, que conta a história dúbia de um homem errante e misterioso que tanto pode passar por um alienígena vindo de outro sistema solar em visita ao nosso planeta (aliás como se intitula) ou por um doente mental que, obviamente, é logo internado numa clínica psiquiátrica de Manhattan.

No decurso da película, quando o psiquiatra que o segue o interroga, ele diz-lhe que no seu planeta não há famílias já que as crianças quando nascem são logo separadas dos seus pais biológicos, passando por várias casas, pelas vidas de vários indivíduos, de forma a deles retirarem o melhor de cada um. Mais tarde, numa festa dada em casa do dito psiquiatra, o nosso herói emociona-se com o ambiente familiar que ali se vive – e quando pergunta à mulher do seu médico o que é uma família, ela responde-lhe, sem hesitar: “Uma Família é termos alguém por quem nos preocupar”.

          Foi Bruno Ribes, filósofo e sociólogo, que recentemente deixou pensado e escrito o seguinte:

         

“A família não será mais a célula de base da sociedade mas antes a flor que desabrocha no tronco social, que lhe dá brilho e que contém os seus órgãos de reprodução. Contudo, de tanto idealizar a família, tornamo-la portadora de promessas que ela não pode cumprir. Toda a flor é frágil, estiolável. Será que a família poderá sobreviver privadamente, vendo-se privada da sua concha de preocupações?

A resposta só poderá ser dada ao bom estilo de “prognósticos… só no fim do jogo”!

 

2.     Sorriam, por favor: é que dizem que chegamos à era moderna.

          Falar em modernidade, é também falar na Família, esse reduto sacrossanto dos afectos, primeiro impostos, depois sentidos, e da realização, desenvolvimento e consolidação da personalidade de qualquer ser humano.

Modernamente, evoluímos para uma família cada vez mais conjugal ou nuclear,fundada num casamento livremente consentido e secularizado, orientado para fins

de completa realização individual e de crescente independência na igualdade e na confusão dos papéis dos seus actores principais.

A regra do jogo é ser feliz, aqui e agora, sem concessões demasiadas ao colectivo, ao bem comum – Edgar Morin disserta mesmo no sentido de considerar que nesta época pós-moderna perdura um valor principal e intangível que consiste no direito cada vez mais proclamado do indivíduo se realizar à parte, de ser livre, num narcisismo de “wind-surf”, própria de uma época do deslizar, em que a res publica já não tem qualquer elo sólido, qualquer ponto de ancoragem emocional estável.

 

3.     O momento histórico é este, os dados culturais estão lançados no xadrez de uma comunidade que apresenta matizes multicolores, novos peões e novos reis e rainhas, em exercícios de poder e dominação, cada vez mais subtis e subentendidos.

Estes são muitos dos autênticos desafios postos à Família pelo mundo exterior sem o qual ela não vive e que, não raras vezes, acaba por influenciar a própria forma de a viver e de a encarar.

Mas mudam-se os tempos e mudam-se as vontades…

Ora, o nosso sistema legislativo também tende a acompanhar este fluxo de mudança.

Jean-Paul Carrière conta-nos a história daquele eremita cristão, vestido de andrajos, com os pés ensanguentados pelos rochedos e pelos espinhos, com a cabeça a arder de sol, que corria sem destino pela areia, gritando a todos osecos do deserto:

         “Tenho uma resposta! Tenho uma resposta! Quem tem uma pergunta?”

       A este propósito, diria eu, em suma, que a lei oferece uma resposta aos pais que se divorciam, esperando que estes lhe coloquem a pergunta certa.

 

4.     Este livro quer dar as pistas para as possíveis perguntas que os pais em conflito devem colocar.

E dá essas pistas em 12 capítulos sucessivos, nas duas partes em que se divide (I- a criança, a parentalidade partilhada e a diversidade familiar/II- a reforma legal e a sua aplicação).

         

Viajando em voo planado sobre os capítulos, direi o seguinte:

Edward Kruk (Canadá) defende que «a parentalidade partilhada preserva o relacionamento das crianças com ambos os progenitores e as crianças a viver em residências alternadas apresentam desempenhos significativamente melhores em todas as medidas de adaptação do que as crianças a viver nas residências únicas».

Linda Nielsen (EUA) adianta que «ainda que a maioria das crianças em custódia física partilhada admita que viver em duas casas pode ser, por vezes, complicado, muitas sentem que os benefícios superam de longe os possíveis inconvenientes».

Para Gérard Neyrand (França), «se o princípio da coparentalidade faz parte do bem-estar da criança, as práticas que permitem o exercício dessa coparentalidade, como a residência alternada, ou a diversificação das possibilidades de contacto e de encontros da criança com o pai com quem não vive, parecem-nos ser defensáveis deste ponto de vista, ainda mais porque na maioria das situações revelam que o interesse das crianças e o dos pais não deve ser dissociado».

Lluís Flaquer, Anna Escobedo, Anna Garriga e Carmen Moreno (Espanha), a reboque dos dois projectos que elaboraram, esclarecem que alguns dos principais resultados da pesquisa revelam a associação do crescimento da residência alternada à prevalência mais elevada da igualdade de género e evidenciam que os adolescentes que vivem nestas famílias apresentam maior bem-estar do que os que vivem em famílias monoparentais.

Sofia Marinho, uma das editoras da obra, constata que a negociação do acordo parental apresenta menos dificuldades na residência alternada e que existe maior assiduidade na partilha comunicativa nestas famílias que se revelam diversas e moldadas pela relação entre meios e lógicas de comunicação e por novas dinâmicas de funcionamento.

A 2ª editora da obra, Sónia Correia, dá voz às famílias monoparentais, evidenciando no seu estudo o papel central que assumem nessa relação a interligação entre redes de apoio e cuidados a que pais e mães têm acesso, os seus recursos económicos e a presença/ausência do outro progenitor na organização dos tempos da criança e dos cuidados quotidianos.

Já na II parte, e nas implicações da última reforma legal do Código Civil e do regime das responsabilidades parentais, Guilherme de Oliveira, um dos legisladores e pais da dita reforma, defende que a fixação do regime da residência alternada é totalmente compatível com o regime jurídico português, sem que tenhamos de fazer interpretações muito amplas dos termos da lei.

Jaqueline Cherulli (Brasil) adianta que a actual lei brasileira da guarda compartilhada, voltada ao equilibrado convívio entre os progenitores, com a dupla residência, revela-se como um poderoso instrumento de combate aos comportamentos de alienação parental.

Joaquim Manuel da Silva, juiz português por mim formado nesta área em 1999-2000, no CEJ, conclui, de forma assaz apaixonada, que a residência alternada é uma das repostas possíveis, sendo, no entanto, a que melhor responde aos objectivos estatuídos no artigo 1906º do CC, ao interesse superior da criança, ao seu direito de ter pai e mãe com grande proximidade física e emocional.

Ana Reis Jorge, no âmbito do seu doutoramento, conclui que mais do que fazer a apologia de um único modelo de residência após o divórcio/separação, e evitando incorrer na ideia da complementaridade de género, tendente à perpetuação de desigualdades e da hierarquização de funções na família, se exige um entendimento plural do superior interesse da criança.

Rute Agulhas e Alexandra Anciães, falando sobre perícias nos processos de Responsabilidades Parentais, concluem que a criança tem direito a conviver com ambos os pais a manter com estes laços afectivos significativos, essenciais para o estabelecimento e manutenção de relações de vinculação segura, potenciando o regime da residência alternada a preservação da relação da criança com ambos os pais e dos pais com a criança, diminuindo o conflito parental e dando voz aos imperativos de justiça social relativos à protecção da criança.

Ricardo Simões fecha a obra falando de história e do caminho que se trilhou até aqui chegar – guia-nos por uma reflexão exploratória sobre a ligação da evolução da construção social dos conceitos de responsabilidade parentais partilhadas e da residência alternada na esfera política e legislativa, com a constituição de um movimento cívico-social de pais e de mães.

Ou seja, temos lei, temos doutrina, temos agora seguros dados científicos, falta-nos a vontade de mudar… 

         

No fundo, queremos ultrapassar a dicotomia Mãe cuidadora e Pai provedor e assumir a necessidade de um verdadeiro e plural envolvimento parental.

Pois só tendo em conta as exigências da vinculação segura e da parentalidade positiva e promovendo uma relação respeitosa e serena entre pai e mãe é que é possível preencher de forma cabal o conceito indeterminado do melhor e superior interesse da criança.

 

5.     Falei de pessoas, de famílias, de filhos, de pais e de mães.

Quando esta criança deixar de o ser, o que certamente ocorrerá precocemente, talvez pergunte se a culpa não foi do sistema: se o sistema não deveria ter obrigado os pais a ficarem juntos; se o sistema não deveria ter obrigado os pais a resolver os seus problemas e desavenças, cedendo-se, por forma a fazerem da felicidade dos filhos a sua felicidade; se o sistema não deveria avisar os pais que a criança só é plenamente feliz, não numa família sem problemas, mas numa família, com referenciais que deverão constituir sempre a última certeza.

Talvez a criança que o já não é peça que o sistema impeça os pais de, no supermercado, porque a mãe queria verdes e o pai queria maduros, tragam no saco de compras a notícia, tirada ao balcão ou na caixa multibanco, de que, doravante, viverá com a mãe todos os dias, excepto quartas e sábados, em que o pai a levará para casa dele.

Talvez o sistema responda à criança que a culpa não é sua; talvez o sistema peça à criança que, quando adulto ou pai ou mãe (já que não são necessariamente coincidentes), o mude.

Talvez o sistema já saiba que aquela criança não poderá mudá-lo, porque o sistema que ela conhece é aquele que, sem formalismo e sem disso se aperceber, lhe deu um pai e uma mãe, mas lhe tirou para sempre os pais.

Talvez o sistema e a criança que o já não é concluam que o sistema que temos o temos por causa dos pais que temos…

Os caminhos podem apontar caminhos mas não fazem os caminhos.

Este livro é sobre tudo isto e

muito mais, sobre dois pais, um filho, duas casas, a da mãe e a do pai.

Esta é uma lição – científica – para todos os pais, para todos os Advogados e para todos os Magistrados que têm de começar a contar com mais um prato no menu dos possíveis regimes de convivência parental no âmbito das acções de regulação do exercício das responsabilidades parentais.     

Que deles se sirvam à vontade – sabemos que este regime da residência alternada não é para todas as crianças mas pode servir para muitas mais crianças portuguesas, em busca da consagração da ideia de que, mesmo após a ruptura conjugal, pode continuar a existir UMAfamília.

 

 Coimbra, 9.12.2017



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