Qualquer preferência inicial por parte da criança acaba por desaparecer por volta dos 18 meses, quando os convívios com ambos os progenitores se mantêm regulares e pouco espaçados.
O Direito de Família e das Crianças tem vindo a substituir os grandes princípios filosóficos por juízos morais assentes no conhecimento científico sobre a Psicologia e o desenvolvimento da criança. A desinstitucionalização da família e recentramento na criança levanta desafios à legitimação das práticas jurídicas em função das aspirações dos cidadãos. Na sociedade onde a informação se encontra acessível de forma mais ou menos democrática através da internet, assistimos à proliferação de pseudociência, que frequentemente é confundida com evidência científica. Assim, assistimos nesta área à circulação de dogmas que pouco devem à actual evidência científica de outras Ciências Sociais, colocando em causa o superior interesse de qualquer criança a conviver com ambos os progenitores ou pais.
O alerta para o uso de pseudociência e a selecção sectária de estudos para fazer valer determinados pontos de vista, já tem sido dado há algum tempo por Linda Nielsen, uma reputada investigadora norte-americana nesta matéria.
Segundo esta investigadora os mitos e a evidência científica sobre a residência alternada podem ser sintetizados da seguinte forma:
Mito
Os progenitores têm de estar de acordo;
Evidência científica
Em crianças com residência alternada observou-se que 50% a 80% dos progenitores não concordou inicialmente com a mesma.
Mito
A comunicação entre eles tem que ser frequente e positiva;
Evidência científica
A comunicação em residência alternada é essencialmente formal, não presencial e limitada.
Mito
Ambos têm que trabalhar como uma equipa;
Evidência científica
A Parentalidade em residência alternada é essencialmente uma parentalidade paralela, também típica das residências únicas, ou seja, não existem diferenças entre modelos.
Mito
Não pode existir conflito ou o mesmo deve ser praticamente inexistente.
Evidência científica
Com a residência alternada em 59% das situações o conflito mantém-se, em 40% diminui e em apenas 1% aumenta
Estes mitos estão também plasmados na nossa doutrina jurídica e ainda prevalecem no ensino do Direito e junto dos magistrados. Mas a realidade, com base nas investigações dos últimos 25 anos e pela própria observação empírica das práticas dos profissionais em Portugal, é outra. Se a lógica doutrinal para a aceitação da residência única observa comportamentos semelhantes por parte dos progenitores com a criança em residência alternada, então as condições impostas à priori não passam de uma construção abstrata e ideologicamente determinada.
A justificação da modelo de residência com base na situação de conflito no momento da regulação do exercício das responsabilidades não é só rejeitada pela evidência científica, mas ainda confirmada empiricamente em diferentes estudos, e em particular no livro recém-publicado, “A Família das Crianças no Divórcio dos Pais”, do Juiz de Direito, Joaquim Manuel Silva. A ideia, com várias décadas, que a residência única era o único modelo que defendia a criança da violência do conflito parental, é uma ideia contradita pela própria realidade, especialmente nos últimos 20 anos em Portugal, com o aumento exponencial de divórcios e consequentemente do número alarmante de incumprimentos, até aos dias de hoje. Assim, não podemos continuar com o paradigma baseado na avaliação do conflito parental para definir regimes de residência para as crianças. O conflito parental é negativo para as crianças em qualquer dos regimes. Mas porque é devemos relativizar de alguma maneira o conflito? Geralmente um ou ambos os progenitores tendem a exagerar no conflito aquando da separação/divórcio para impedir a residência alternada e/ou os contactos da criança com o outro. Conflito presente não significa conflito no futuro. Aliás, os estudos demonstram que o conflito tende a diminuir passados 12 a 24 meses, o que nos leva à questão: teremos que condicionar toda uma vida de uma criança em função de um momento transitório de conflito parental por parte dos seus progenitores?
Nesse sentido, não podemos associar a menor ou maior qualidade parental à existência de conflito, mas antes ter em conta que os tempos de convívio e a qualidade do mesmo têm mais impacto na criança do que o conflito parental. Se estes dados nos apontam para que a residência alternada se apresente, à partida, como a melhor opção para a criança, a verdade é que exigem também uma alteração do paradigma de intervenção junto da família da criança. Ou seja, o superior interesse da criança passa não só por amplos convívios com ambos os progenitores, mas igualmente pela redução ou eliminação do conflito parental, através de uma intervenção que se quer mais terapêutica e menos institucional.
Por fim, um dos maiores mitos nesta matéria: as crianças até aos 3 anos não devem ter residência alternada e os contactos com o progenitor não residente, geralmente o pai, devem ser limitados. A esmagadora maioria dos investigadores na área da vinculação e do desenvolvimento infantil dizem-nos que não existe uma única figura de referência, mas antes que a criança estabelece vinculações com ambos os progenitores e quase ao mesmo tempo. Qualquer preferência inicial por parte da criança acaba por desaparecer por volta dos 18 meses, quando os convívios com ambos os progenitores se mantêm regulares e pouco espaçados. O investigador e Professor em Psiquiatria na Universidade do Texas, Richard Warshak, elaborou em 2014 um relatório, apoiado por 110 profissionais, onde ficou claro que a residência alternada é adequada a crianças de qualquer idade, ou seja, que as pernoitas de bebés com os progenitores não residentes não apresentam, genericamente, resultados negativos para os mesmos.
Com isto não se pretende dizer que a residência alternada seja adequada para todas as crianças, mas que, actualmente, a evidência científica nos chama à atenção para a necessidade de mudança de paradigma sobre o que é o superior interesse da criança. É preciso estar atento, informado e não recusar as evidências cientificas da Psicologia, Sociologia e sobre o desenvolvimento da criança.
Ricardo Simões (Presidente da Direcção da Associação Portuguesa para a Igualdade Parental)
Referências:
Neyrand, G. (2009). Retour sur la résidence alternée : la loi comme garant symbolique de la légitimité des pratiques. (Érès, Ed.) Le dialogue familial, un idéal précaire, pp. 109-119.
Nielsen, L. (2011). Shared Parenting After Divorce: A Review of Shared Residential Parenting Research. (L. Taylor & Francis Group, Ed.) Journal of Divorce & Remarriage, 586–609.
Nielsen, L. (2013). Parenting Time & Shared Residential Custody: Ten Common Myths . The Nebraska Lawyer.
Nielsen, L. (2013). Shared Physical Custody: Myths and Misconceptions. The Family Law Review, 4-8.
Nielsen, L. (2013). Shared Residential Custody: Review of the Research (Part I of II). American Journal of Family Law, 61-71.
Nielsen, L. (2013). Shared Residential Custody: Review of the Research (Part II of II). American Journal of Family Law, 123-137.
Silva, J. M. (2016). A Família das Crianças na Separação dos Pais. Lisboa: Petrony.
Warshak, R. A. (2014). Social science and parenting plans for young children: A consensus report. Psychology, Public Policy, and Law, pp. 46-67.
Fonte: https://www.publico.pt/2016/07/31/sociedade/noticia/desmistificar-a-residencia-alternada-1739854