Ensinando as crianças a odiar o/a ex.
por Barbara Kay
Alguma da família de Dickens: (da esquerda) Charles Dickens Jr., Kate Dickens, Charles Dickens, Srª. Hogarth, Mary Dickens, Wilkie Collins.
O grande novelista vitoriano Charles Dickens foi duplamente traumatizado na sua juventude por um pai irresponsável e por um sistema social cruel com pouca valorização da psique frágil das crianças.
A experiência de Dickens, espiritualmente marcante, aos 12 anos, numa fábrica de calçados, forneceu-lhe uma cornucópia criativa de inspiração para seus romances, em que ele exaltava muita empatia pelo alter-ego dos seus filhos ficcionados. No entanto, como Robert Gottlieb escreve em seu novo livro, “Great Expectations: The Sons and Daughters of Charles Dickens ” o autor pode ser cruel na sua vida pessoal. E aqueles mais próximos a ele, acompanharam as suas próprias cicatrizes como resultado.
Quando o último filho de Dickens, o mais jovem de uma grande prole, tinha seis anos de idade, Dickens, que tinha caído de amores pela atriz Ellen Ternan, expulsou a sua esposa Catherine da sua vida, e exigiu que seus filhos fizessem o mesmo. Ele justificou sua brutalidade contra sua esposa com alegações de que Catherine era uma mãe sem amor – não é verdade – e que as crianças não a amavam – uma mentira muito mais perniciosa.
Este comportamento emocional e grotesco – incitar as crianças a odiar o outro progenitor – é uma forma de alienação que não tinha um nome, em 1850. Mas hoje, é bem compreendido por especialistas, bem como por aqueles que têm a infelicidade de serem o progenitor-alvo, como a Catherine Dickens. O termo usado para descrever o fenómeno, uma vez que afeta as crianças, é a Síndrome de Alienação Parental (SAP).
Graças à quinta edição do American Psychiatric Association’s Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5), lançado na semana passada, a SAP é agora quase reconhecida como uma perturbação oficial. Digo “quase” porque essas exatas palavras não estão no DSM-5 (esta foi uma decisão deliberada e muito discutida). No entanto, a nova categoria mais ampla de “abuso psicológico da criança” é definida como “atos verbais ou simbólicos não acidentais por progenitores ou responsáveis por uma criança, que resultam, ou têm potencial razoável para resultar, em danos psicológicos significativos para a criança.”
Sob essa rubrica, encontra-se a descrição dos sintomas dos “problemas relacionais progenitor-filho/a“. Por exemplo, a percepção da criança de um progenitor alienado “podem incluir atribuições negativas das intenções do outro, a hostilidade ou bode expiatório do outro e sentimentos indevidos de alienação“.
A SAP foi teorizada pelo falecido psicólogo Richard Gardner, em 1985. Ele refere-se a uma “perturbação em que as crianças estão obcecadas com a desaprovação e crítica de um dos progenitores – depreciação esta que é injustificada e/ou exagerada”
SAP não tem nada em comum com a alienação moderada que pode acompanhar todo o divórcio com um nível de conflito elevado (“É possível o teu pai vir a horas para variar?“). Em vez disso, a criança vítima de SAP é submetida a uma campanha calculada e sem fundamento de incitamento ao ódio do progenitor alvo. Progenitores alienantes estão tão consumidos com raiva no progenitor alvo que a sua raiva sempre triunfa sobre bem-estar mental da criança.
A criança deve ter uma coragem extraordinária e força de caráter para resistir a tal propaganda de ódio. Como Gottlieb observa em Dickens: “Qualquer um que tentou argumentar com [o autor], ou defender a [sua esposa] Catherine, foi expulso para a escuridão absoluta, para nunca mais ser perdoado“.
Em tempos mais modernos, a ex-modelo e jornalista Pamela Richardson, em seu livro de 2006, “A Kidnapped Mind“, retrata-nos uma angustiante deterioração psicológica do seu filho alienado que, após 10 anos de uma impiedosa de campanha, realizada pelo seu pai para “desaparecer” com ela da vida do menino, atirou-se da ponte de Vancouver Granville Street, em 2001.
Falei com Bill Bernet, professor emérito de psiquiatria da Universidade de Vanderbilt, que é especialista em efeitos do divórcio e guarda sobre as crianças, e que foi o principal defensor da inclusão da SAP no DSM. Ele disse-me: “Mesmo que ele não vá tão longe quanto esperávamos, eu estou muito feliz que esta nova terminologia esteja no DSM-5“.
Professor Bernet lidera o Grupo de Estudos sobre a Alienação Parental, cujos membros se dedicam a formar médicos, assistentes sociais e outros profissionais da linha de frente, de modo a que estes possam reconhecer a doença nas suas características invariáveis e desenvolver estratégias para a combater. O efeito da inclusão no DSM irá, esperançosamente, auxiliar os tribunais de família, permitindo aos juízes adquirir familiaridade com a Síndrome e tomar decisões céleres para proteger a criança do progenitor alienador.
A maioria das crianças vai continuar a amar seus progenitores, apesar de abuso pela SAP. Na verdade, é extremamente difícil para uma criança parar de amar um progenitor. Aqueles que o fazem geralmente têm vergonha de admitir isso. Uma criança que tem orgulho em odiar um dos progenitores é provavelmente uma criança que sofre com a SAP.
Se os vitorianos soubesse o que sabemos hoje, Dickens poderia não ter escapado com o comportamento insensível para com a sua sofredora esposa e para com as crianças que nada fizeram para o merecer. Esperemos que os esclarecimentos sobre esta doença ajudem a levar a SAP para o caixote do lixo da história.
Tradução: Bianca Cesário
Revisão e adaptação no idioma português: Ricardo Simões
Coordenação: Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direito dos Filhos