Mesa B: Sistema de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em Portugal
Um século de(s) proteção à infância
“Um homem sem olhos consegue ver como vai este mundo” disse Rei Lear ao cego Gloucester.
William Shakespeare
BREVE INTRODUÇÃO HISTÓRICA – resumo
A visibilidade da barbárie atual desnuda a condição social da infância com uma grande crueldade. Os problemas com que nos ocupam diariamente, no exercício da profissão ou tão só entram nas nossas casa pelas notícias, nascem como cogumelos e (não sei se sabem) os cogumelos absorvem os humores ambientais e há que ter imensa precaução com os que nascem em pântanos e em locais sombrios[1].
Uma breve revisão pela história contemporânea traz-nos à lembrança o entusiasmo com que Hellen Key, citada em Montessori (1936), na transição do século XIX para o século XX, olhava as mudanças que estavam a ocorrer no mundo sociopolítico da infância. A criança era o centro de um processo que se acreditava sério e irreversível!
No 1º capítulo “O Século da Criança”, do livro A Criança começa assim:
Foi tão rápido e surpreendente o progresso atingido em poucos anos nos cuidados e educação das crianças que se pode relacionar mais com um despertar de consciência do que com a evolução das condições de vida (Montessori, 1936, p. 19).
Significativa esta expressão!.
Era dirigida essencialmente às crianças vítimas do desenvolvimento do trabalho industrial e cuja condição era relatada nas longas monografias da época! O trabalho duro era o quotidiano, ou a falta dele e, portanto, a vida de miséria arriscada pelas ruas da cidade. A fome, a doença, a violência e a mortalidade faziam parte de uma paisagem assustadora, tanto urbana como rural[2]. A análise da condição de vida era secundarizada face às questões da educação e comportamento. Era a exploração cruel do pauperismo travestida por leituras científicas (positivistas), reformistas, de controlo social e moral das classes pobres.
O “despertar das consciências” face ao potencial de violência inscrito na vida das crianças das classes trabalhadoras, conduzido pela ciência experimental e empírica, sustentou o desenvolvimento de um ideal de proteção e regeneração das classes populares, intelectual e institucionalmente organizado, em nome da causa da criança. Foi dinamizador de todo um conjunto de programas judiciais, sanitários e educativos para levar a cabo a promessa liberal da “regeneração” da população[3]. Criaram-se as primeiras maternidades e a pediatria e, com elas, alguns avanços são inquestionáveis, mas vale relembrar que os hospitais e as maternidades eram instituições para assistência aos pobres e a miséria não se apaga na maternidade!. Outras medidas não foram senão de políticas higiénicas e eugénicas de controlo e de repressão, moralizadoras da vida das populações pobres. A recente publicação de Maria Antónia Lopes[4], sobre o controlo e os apoios às mães solteiras no séc. XIX mostra isso mesmo.
Por outro lado a redefinição das idades da infância e o reconhecimento político da necessidade de instituições socializadoras e educativas surgiam na sequência da regulação da escolaridade obrigatória[5] e do trabalho infantil[6]. A escola laica tornou-se assim uma segunda instituição nova e fundamental em toda a contemporaneidade. Era uma instituição “redentora social da infância”, lugar “próprio para a criança”, como dizia Montessori, para disciplinar e formar “os homens e mulheres de amanhã”!.
Para as crianças abandonadas ou desamparadas, refratárias à escola, vadias ou mesmo infratores, criaram-se os tribunais de menores, para julgar as suas causas e aplicar medidas educativas ou corretivas, se necessário fosse. A importância sociojurídica da criança e o investimento que nela se fez radicava nesta crença da construção do “Homem Novo” para o progresso social e a “riqueza das nações”
A capacidade do positivismo de inspirar soluções políticas e profissionais (neutras e técnicas), foi grande. Com ele cresceram um conjunto de profissões, de entre as quais as chamadas protoformas do Serviço Social.
Mas o cientismo e o tecnicismo que trouxeram a esperança de alguns, trouxeram também a guerra. E aí, a primeira metade do séc. XX foi brutal!
Hoje, no séc. XXI, os relatos da comunicação social e os relatórios públicos das instituições nacionais e internacionais dão visibilidade de novo à pobreza, às violências, à angústia crescente das crianças e dos jovens, às migrações, à fuga das guerras …. E os discursos tecnicistas e moralistas dos poderes e das políticas públicas estão de volta (tal com a guerra!).
Propomos fazer uma breve revisão que nos permita compreender o nascimento e a maturação do problema da infância e suas instituições em Portugal, porque a defesa social e moral dos mandantes assim o foi impondo às classes populares, mais pobres.
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[1] Usa-se o adágio popular de natureza biologisante , à semelhança do linguajar dos compêndios e dos mais variados textos das ciências sociais dos finais do séc XIX e princípios do séc. XX, que radicava na crença que, à semelhança da natureza, a sociedade é um organismo e, com tal, tem alguns lugares sociais sombrios e pantanosos. Num período tão aberto ao iluminismo, todos os lugares sombrios se afiguravam perigosos.
[2] São muitas e longas as descrições da vida miserável das crianças das classes trabalhadoras tanto pelo mundo como em Portugal. Cf. Engels, F.(2008). A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo, Boitempo Editorial; Santos, Mª José (1999). A sombra e a luz. As prisões do liberalismo. Porto, Edições Afrontamento; Oliveira, Pdre. António (1918). Criminalidade, educação. Paris-Lisboa, Livrarias Aillaud e Bertrand.
[3] Cf. Tomé, Mª Rosa. A criança e a delinquência na Primeira República. Lisboa, CPIHTS, 2003. Ver 2º e 3º capítulo.
[4] Lopes, Mª Antónia. Mães solteiras entre a repressão e os apoios do Estado: intimações, subsídios e abandonos no distrito de Coimbra, 1850-1890. Em Araújo Mª Marta e Péres Álvarez, Mª José (coord.). Do silencia à ribalta. Os resgatados das margens da História (séculos XVI-XIX). s.l., Lab2PT, 2016, pp. 37-54.
[5] Os artigos 237º e seguintes da Constituição de 1822 consagravam “o ensino da mocidade de ambos os sexos a ler, escrever e contar” bem como a criação de novos estabelecimentos de instrução pública e em 1838 foi consagrada a instrução primária gratuita. Cf. Canotilho, Joaquim Gomes. “As Constituições”, em Mattoso, José (dir.), História de Portugal, vol V., p. 128 e ss, 1998.
[6] Em Inglaterra o Factory Act de 1818 fixou a idade mínima de trabalho aos 9 anos e a jornada de trabalho de 12h para os trabalhadores de algodão, em 1838 foi proibido o trabalho noturno aos menores de 18 anos e em 1833 foi reduzida a jornada a 48 h semanais. Em Portugal, o Código Civil Português de 1867 impunha o limite de 9h de trabalho aos aprendizes com menos de 14 anos e de 12h aos menores de 18 anos. Cf. Castiglioni, G. E. Di Palma. Conferencia apresentada no dia 28 de outubro de 1931 à X sessão da Associação internacional de Proteção à Infância, em AIPI, Miscelânia, Sessão de Lisboa, 1931.